domingo, 22 de junho de 2008

'É disso que elas gostam"


Inteligência é o maior afrodisíaco que um homem pode oferecer.

Por Kika Salvi


"Nem de longe é a beleza de um homem que encanta a mulher. Para a sorte de vocês (ou azar, vai saber...), nosso barato é diferente, e pode ser definido, entre outras coisas, como 'virilidade'...

Tem a ver com autoconfiança, sempre. E com perspicácia, qualidade muito rara num homem. Ou você pensou que seria fácil? Não ligamos pra barriga, careca ou pneuzinhos, até porque sabemos muito bem que nada disso atrapalha, tanto quanto o seu oposto pode ser absolutamente desprovido de encantos se não vier acompanhado de um perfil psicológico substancioso...

Acho que poucas coisas nesta vida são mais eróticas e provocantes do que a inteligência. E quem a tem também possui senso de humor – porque somente os inteligentes não levam nada muito a sério e sabem se divertir mesmo com as intermináveis chatices cotidianas. Então temos inteligência e senso de humor, que somados à malícia (outro atributo dos neurologicamente privilegiados) arrebatam as mulheres e tornam um homem ainda maior aos nossos olhos. Porque não basta pregar a gente na parede. Isso todo ser munido de um bom falo é capaz. É preciso, para se diferenciar da varonil multidão, despertar nosso impulso primitivo racionalmente ativável...

Vocês olham uma mulher e pensam: 'Meu Deus, que peitos, que nádegas, que cinturinha escultural, que boca mais lasciva...', e já começa o devaneio e o desejo de abater. Nós, não. É impossível uma mulher (minimamente inteligente, claro) olhar prum homem esteticamente interessante e, sem nenhuma conversa, desejar ser invadida. Não. Eis aqui a diferença: nosso desejo de invasão não prescinde do intelecto (você já deve ter presenciado o olhar admirado e sensual das alunas de um grande professor). É preciso passar primeiro pela porta da razão para chegar à porta da alegria. E quanto melhor for o instrumento pensante do sujeito, maiores as chances de acolhida de um outro também interessante e mais mecânico agente.
Porque mulher gosta mesmo é de ser surpreendida, e isso só acontece quando se depara com alguém mais esperto do que ela. Todos sabem o jogo que estão jogando, esse interminável gato-atrás-do-rato que motiva nossa vidinha. E é preciso reconhecer as suas regras, o que requer maturidade. Homem que baba demais, no chance. Os que bajulam e não convencem, também. Os cafas, cruz-credo! A gente tem olho clínico pra eles e passa longe quando os vê. Os demasiadamente (ou precipitadamente) românticos têm grande chance de morrer na praia, porque acaba o desafio. Os posudos e pretensiosos não duram mais do que uma noite. Restam então os inteligentes.
Estes, sim, sabem do que somos feitas. E sabem que, por trás de toda empáfia, vaidade ou sedução, está um bichi-nho indefeso em busca de acolhimento, louco por um colo. A virilidade está nisso, na consciência masculina de que não somos assustadoras nem lascivas, mas apenas mulherzinhas assustadas e ávidas por um olhar que nos descubra. E nos devore, de preferência."

domingo, 1 de junho de 2008

Balada de loucos

Mudos atalhos afora, na soturnidade [atmosfera sombria, triste] de alta noite, eu e ela caminhávamos.
Eu, no calabouço [prisão subterrânea] sinistro de uma dor absurda, como de feras devorando entranhas, sentindo uma sensibilidade atroz morder-me, dilacerar-me.
Ela, transfigurada por tremenda alienação, louca, rezando e soluçando baixinho rezas bárbaras.
Eu e ela, ela e eu! — ambos alucinados, loucos, na sensação inédita de uma dor jamais experimentada.
A pouco e pouco — dois exilados personagens do Nada — parávamos no caminho solitário, cogitando o rumo, como quando se leva alguém a enterrar alguém, as paradas rítmicas do esquife[caixão]...
Eram em torno paisagens tristes, torvas [pavorosas], árvores esgalhadas [com ramos cortados] nervosamente, epileticamente — espectros [fantasmas] de esquecimento e de tédio, braços múltiplos e vãos, sem apertar nunca outros braços amados!
Em cima, na eloqüência lacrimal do céu, uma lua de últimos suspiros, morta, agoniadamente morta, sonhadora e niilista [adepto da doutrina de descrença absoluta] cabeça de Cristo de cabelos empastados nos lívidos [descorados, acinzentados] suores e no sangue verde de letais gangrenas.
Eu e ela caminhávamos nos despedaçamentos da Angústia, sem que o mundo nos visse e se apiedasse, como duas Chagas mascaradas na Noite.Longe, sob a galvanização [revestimento] espectral do luar, corria uma língua verde de oceano, como a orla de um eclipse.

(Cruz e Sousa*, Evocações)

* poeta nascido em 1861, negro que morreu aos 36. Casou-se com Gravida que enlouqueceu e passou por vários períodos de internação em hospitais psiquiátricos. Nesta balada relata um episódio em que estava passeando com sua mulher e percebe que ela subtamente estava enlouquecendo.