domingo, 1 de junho de 2008

Balada de loucos

Mudos atalhos afora, na soturnidade [atmosfera sombria, triste] de alta noite, eu e ela caminhávamos.
Eu, no calabouço [prisão subterrânea] sinistro de uma dor absurda, como de feras devorando entranhas, sentindo uma sensibilidade atroz morder-me, dilacerar-me.
Ela, transfigurada por tremenda alienação, louca, rezando e soluçando baixinho rezas bárbaras.
Eu e ela, ela e eu! — ambos alucinados, loucos, na sensação inédita de uma dor jamais experimentada.
A pouco e pouco — dois exilados personagens do Nada — parávamos no caminho solitário, cogitando o rumo, como quando se leva alguém a enterrar alguém, as paradas rítmicas do esquife[caixão]...
Eram em torno paisagens tristes, torvas [pavorosas], árvores esgalhadas [com ramos cortados] nervosamente, epileticamente — espectros [fantasmas] de esquecimento e de tédio, braços múltiplos e vãos, sem apertar nunca outros braços amados!
Em cima, na eloqüência lacrimal do céu, uma lua de últimos suspiros, morta, agoniadamente morta, sonhadora e niilista [adepto da doutrina de descrença absoluta] cabeça de Cristo de cabelos empastados nos lívidos [descorados, acinzentados] suores e no sangue verde de letais gangrenas.
Eu e ela caminhávamos nos despedaçamentos da Angústia, sem que o mundo nos visse e se apiedasse, como duas Chagas mascaradas na Noite.Longe, sob a galvanização [revestimento] espectral do luar, corria uma língua verde de oceano, como a orla de um eclipse.

(Cruz e Sousa*, Evocações)

* poeta nascido em 1861, negro que morreu aos 36. Casou-se com Gravida que enlouqueceu e passou por vários períodos de internação em hospitais psiquiátricos. Nesta balada relata um episódio em que estava passeando com sua mulher e percebe que ela subtamente estava enlouquecendo.

Um comentário:

૮α૨ѳℓ disse...

As palavras que estão em conchetes foi vc quem escreveu, certo? Eu gostei muito dessas "legendas instantâneas", me ajudaram a compreender o texto. :)